domingo, 20 de julho de 2025

O Ceifador - Flavio Dutka

 


Flavio Dutka constrói em O Ceifador uma cena que vibra com intensidade visual e simbolismo latente. Com um estilo gestual, entre o expressionismo e a arte popular contemporânea brasileira, essa pintura revela muito mais que um homem com uma foice: ela convoca o mistério do ciclo da vida, o trabalho ancestral e a poesia do corte como metáfora existencial.

O Ceifador (2019)

Aqui, essa  obra conversa com tradições que vão de Van Gogh a Portinari, mas com sotaque brasileiro: a cor intensa, o traço livre e o corpo em ação. É pintura que grita em silêncio — captura o instante do corte, mas também o silêncio que vem depois.

Dutka transita entre o popular e o simbólico, revelando uma poética da ação. O ceifador, de costas ao espectador, de chapéu largo e foice em punho, torna-se um arquétipo: ele não tem rosto porque é todos nós, é o agente invisível do ciclo que começa, termina e recomeça.

O movimento curvo da foice — linha que rasga a tela e reverbera em outras formas sinuosas ao redor — está impregnado de ritmo e intenção. Dutka domina essa linguagem pictórica em muitas de suas obras: o gesto não é apenas formal, mas narrativo. Cada pincelada tem carga emocional e sentido simbólico. Como em outros trabalhos do artista, os fundos não delimitam espaços realistas, mas atmosferas. Aqui, o verde-laranja nos coloca num tempo indefinido — talvez entardecer, talvez auge do verão — onde tudo pulsa e pede corte.

 É possível perceber ecos de artistas como Candido Portinari em seu uso da figura camponesa como ícone nacional, mas também a liberdade gestual do expressionismo europeu, além de traços do muralismo latino-americano, onde o corpo é território.

Elementos visuais e estilísticos

  • Figura principal: O ceifador aparece de costas, vestindo roupa escura e chapéu preto. Seu corpo se inclina para frente em um gesto dinâmico de movimento, com o braço estendido segurando a foice — uma linha curva que rasga o espaço.
  • Paleta de cores: Verde, laranja, preto e toques de vermelho dominam, criando contraste entre a energia da terra e o simbolismo do trabalho.
  • Traços soltos e expressivos: Dutka emprega pinceladas rápidas, quase nervosas, que sugerem ação contínua, reforçando o sentido de corte, urgência e ritmo.
  • Elementos abstratos: Linhas curvas e manchas circulam a cena, dando sensação de vento, poeira ou energia invisível que envolve o ceifador — como se o mundo reagisse ao seu gesto.
  • Espaço pictórico: O fundo não é realista; é uma sugestão de ambiente, com formas e cores que evocam campo e céu, mas sem delimitação formal.

Interpretação simbólica

  • A figura do ceifador é um ícone universal: aquele que colhe, que encerra ciclos, que trabalha com aquilo que a terra dá. É também símbolo da morte — não como fim absoluto, mas como transição e renovação.
  • A foice, curvilínea e proeminente, age como extensão do corpo e da intenção. Não é apenas ferramenta, mas gesto ritual. Ela corta o tempo, delimita fronteiras e transforma o invisível em concreto.
  • O uso do fundo verde-laranja pode remeter ao entardecer do campo, ao calor tropical, ao conflito entre vida e finitude — a pulsação da existência.
  • Ausência de rosto: O fato do ceifador estar de costas e sem traços faciais amplia seu caráter universal. Ele pode ser qualquer um. É o trabalhador, o tempo, o destino.

Dutka compreende a pintura como ação, como semeadura visual. O Ceifador colhe em nome do tempo, mas sua colheita não é só vegetal — é existencial. Ele corta silenciosamente, enquanto o mundo se move em torno do seu gesto. Ao pintar esse homem em movimento, Dutka nos convida a refletir sobre o que deixamos para trás, o que levamos adiante, e o que precisamos ceifar em nós mesmos para que algo novo brote.



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